Estou em Belém. Esta manhã, depois de ir ao banco, vejo uma senhora vendendo tapioquinha. Hum, adoro! Quero uma. Ela disse: “senta ali na sombra, moça, que tá sol!” Sentei. Da sombra, observei a tapioquinha tomando forma. Lá foi ela. Coloca a massa de tapioca na frigideira, em pequenas colheradas. Com a mesma colher, vai espalhando tudo para formar a panquequinha. Espera um instante. Sacode a frigideira e, num pulo, a tapioca já tinha virado pro outro lado. Espera mais um tantinho. Abre espaço num pano de prato e coloca a tapioca esticadinha por cima. Pega um pote de manteiga e, com uma faca, vai aos poucos besuntando a tapioca. Primeiro, nas bordas do círculo. Depois, no centro. A faca é colocada de lado. Fecha o pote de manteiga e pega o pote de queijo. “O queijo está bem molinho, tá calor!”. Com uma colherzinha vai pegando um pouquinho de queijo e espalhando na tapioca. Coloca um pouquinho aqui, outro pouquinho acolá. Espalha, espalha, espalha. Bota a tapioca, devidamente amanteigada e aqueijoada, na frigideira novamente. Aquece um pouquinho e, com a colher, vai enrolando, enrolando (aqui no Pará se come tapioca enroladinha, diferente de alguns outros locais do país onde se faz um pastel.) Tapioquinha devidamente enrolada, volta pro pano de prato. “É pra comer agora?” Opa, com certeza. Abre um pote, pega um guardanapo. Dobra no meio, levanta a tapioca, coloca ela em cima. Parece que está colocando a fralda num bebê, de tanta delicadeza. Repete com outro guardanapo, desta vez fazendo uma trouxinha. 3 reais por uma deliciosa tapioquinha feita por uma senhora sem pressa e com muito carinho.
Publiquei o texto acima numa rede social, em 2014. Em pouco tempo surgiram os comentários: “cadê foto?”, “queremos fotos!”,“devia ter tirado uma foto!”,“por que não fotografou?”
Acredito que muita gente esperava que eu estivesse sempre de câmera na mão só porque era fotógrafa. Sei que não parece uma expectiva infundada, mas pra falar a verdade vejo muitos mais motivos para não fotografar do que para fotografar. A situação da tapioca exemplifica bem alguns deles:
Não somos neutros com uma câmera na mão
Não tem como apontar a câmera para alguém e achar que essa é uma atitude neutra. A tapioqueira, claro, perceberia se eu começasse a fotografá-la. Talvez ela ficasse vaidosa e contente. Talvez se sentisse invadida. Talvez ficasse com vergonha. Talvez desse uma ajeitada na coluna. Existem várias possibilidades, mas todas elas pressupõem uma só: ela com certeza ficaria auto-consciente do seu corpo e de seus movimentos mudando completamente o rumo daquele momento.
Alterar o momento de rumo muitas vezes quebra algo que estava legal. Aquele momento sublime de uma senhora fazendo tapioca não merecia ser estragado por causa de uma foto.
Sou um pouco radical neste ponto: não só acho que não somos neutros com uma câmera na mão, como acho que fotografar outras pessoas é um ato violento por si só. As palavras que usamos para o ato de fotografar mostram muito bem o que estamos fazendo. Tirar uma foto. Capturar uma foto. Não só as câmeras profissionais são enormes e parecidas com armas, a gente ainda usa esta arma para capturar as pessoas! A responsabilidade é enorme. Nós é que decidimos o ângulo, o momento, como e quando apertar o botão. A pessoa fotografada está à mercê da nossa generosidade (ou falta dela.)
Se o nosso único objetivo com um retrato é fazer uma foto bonitinha, talvez seja melhor não fazer nada. Uma foto bonita não é um motivo bom o suficiente para cometer essa violência. Acredito que retratos podem ser lindas ferramentas para fazer algo pelas pessoas fotografadas e procuro focar meus esforços nestas possibilidades.
A fotografia não é o melhor meio
Que bobagem é aquele ditado que diz que “uma imagem vale mais do que mil palavras”. Nem sempre! No caso da tapioqueira, nenhuma foto ou série de fotos que eu fizesse passaria a história da forma que o texto passou. A fotografia é uma ferramenta e não tem nada de melhor que as outras. Às vezes, o que cumpre o objetivo é um texto, um vídeo, uma voz, uma mistura de tudo.
Me incomoda esta crença de que a fotografia pode passar uma mensagem de forma mais “verdadeira” que outras linguagens. A fotografia não é representação da realidade: é sempre um recorte intencional.
A fotografia nos toma experiências
Se eu tivesse sacado uma câmera para fotografar a história da tapioca, em poucos segundos deixaria de perceber cada um dos movimentos da senhora e passaria a me preocupar com o foco e com a composição da foto. Por alguns segundos, eu deixaria de estar lá.
Ao contrário da ilustração ou da poesia, a fotografia está no dia a dia de muita gente. Susan Sontag, no seu livro “On photography”, disse que “todo mundo está usando a fotografia como diversão, quase tanto quanto o sexo.” Isso foi na década de 70. Hoje tenho certeza que fazemos muito, mas muito mais fotos do que fazemos sexo! É curioso como, tão de repente, nos parece normal passar tanto tempo das nossas vidas olhando o mundo e a sociedade através de retângulos luminosos.
Quando morei no Rio de Janeiro comecei a notar que viajar sem tirar fotos parece inimáginável. É só caminhar pela orla de Copacabana e ali está um moço fazendo uma foto do seu milho meio-comido com o pôr do sol ao fundo, ali está um grupo de amigas fazendo diversos selfies na praia, ali estão pais fotografando cada passo de um bebê. Durante minhas próprias viagens e passeios já cansei de ver guias na maior empolgação contando histórias e causos, e todo mundo só prestando atenção nas suas câmeras. Por quê? Talvez por um hábito impensado, talvez para seguir na busca incessante de impressionar os outros…
Mas nem sempre este é o caso. A maioria das pessoas que conheço e que gostam de fotografia dizem, de forma unânime, que a fotografia serve para relembrar um momento bom. Mas será que precisamos de tantas lembranças?
Será que precisamos voltar do Rio com mil fotos, para relembrar o Rio mais tarde, se quando de fato estávamos no Rio perdemos mil momentos vivendo o Rio através de um retângulo luminoso? E se, ao invés disso, vivêssemos o Rio com todos os nossos sentidos?
Será que precisamos passar a infância inteira das nossas crianças fotografando sem parar? Muita gente me conta que já tem milhares de fotos do bebê de um mês de idade. São milhares de momentos vendo o bebê através de uma tela, ao invés de viver o crescimento do bebê com todos os nossos sentidos.
Fazemos isso porque temos medo. A viagem acaba em poucos dias e bebês crescem muito rápido. O que é uma lembrança se não uma tentativa de segurar o passageiro? Temos medo do passageiro, porque ele passa. E, sim, o momento vai passar: mas não é esse o melhor motivo para fotografar menos e aproveitar mais?
No futuro, é bem possível que lembremos de algumas passagens boas do passado. Mas nossa memória não é infalível e com certeza vários momentos ficarão pra trás. Isso é um problema? Precisamos relembrar? Por que não podemos viver o momento naquele momento e nos desapegarmos dele depois?
Podemos usar a fotografia para ganhar nosso dinheiro. Podemos usar a fotografia como uma ferramenta do nosso próprio ego: provando aos outros que temos sucesso ou relembrando nossos próprios momentos bons. Mas também podemos deixá-la de lado e, com isso, parar para olhar para dentro e para fora. Olhar pra dentro nos ajuda a entender os nossos próprios porquês e de onde eles vêm. Olhar para fora nos ajuda a perceber o mundo que estamos dividindo com outros animais (inclusive os mais difíceis de entender: esses da nossa própria espécie) e como os nossos porquês afetam o que está à nossa volta. Quem sabe, depois de olhar tudo isso, podemos usar a fotografia como uma ferramenta de criação e de celebração.
É por esses motivos que não fotografei a tapioquinha.
Última revisão em: Set/2025